Por Cristina Sanches
Os testes laboratoriais remotos (TLRs), também chamados de point-of-care testing (POCT), são uma forma de ampliar o atendimento à população que traz benefícios quando aplicados de forma adequada. A Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 302/2005 – Regulamento técnico para funcionamento de laboratórios clínicos, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – define os TLRs como exames realizados por meio de equipamento situado fisicamente fora da área de um laboratório clínico e que devem ser gerenciados por laboratórios de análises clínicas. Especialistas ressaltam que é necessária fiscalização para que a segurança do paciente não seja colocada em risco pela emissão de resultados equivocados que possam impactar o diagnóstico, o monitoramento de doenças e a indicação de tratamento adequado ao paciente.
Segundo a Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML), a maior parte dos erros nesse tipo de exame ocorre na fase analítica, daí a necessidade de serem realizados por pessoal treinado, com comprovação de validação metodológica e do uso de controles de qualidade. De acordo com a SBPC/ML, os equipamentos e insumos são, em geral, portáteis e de utilização simples e rápida.
As duas vantagens mais evidentes dos testes laboratoriais remotos são a redução do tempo de tomada de decisão, em virtude da obtenção de um resultado mais rápido; e a possibilidade de levar o teste ao local de atenção do paciente (domicílio, postos de saúde, localidades remotas, veículos paramédicos, locais de desastres e/ou pandemias), possibilitando a realização de exames em populações que não têm acesso a um laboratório clínico e/ou realizar exames laboratoriais.
Existem diversos tipos de testes rápidos disponíveis no mercado, mas um dos mais comuns é o de glicose capilar. “Em especial, os TRLs de glicose auxiliam no rastreio de diabetes (identificando portadores de diabetes nas suas fases precoces e/ou em pacientes assintomáticos), auxiliam os pacientes portadores de diabetes no ajuste das drogas hipoglicemiantes, e no ambiente hospitalar identificam alterações no nível de glicose que necessitam de atenção/correção”, explica Fábio Sodré, presidente regional da SBPC/ML na Bahia.
Para a equipe do Fleury Medicina e Saúde*, uma vantagem importante destes testes está no fato de que, no mesmo momento da consulta, o médico pode ter um resultado em tempo real, bem como avaliar o histórico evolutivo das glicemias realizadas pelo paciente no intervalo das consultas, fato que contribui para agilizar a avaliação médica e garantir maior segurança no seguimento do paciente diabético.
No ambiente hospitalar, a monitorização da glicemia capilar utilizando dispositivos TLR pode ser considerada como parte da avaliação dos sinais vitais, juntamente com a medida da pressão arterial, temperatura, frequência cardíaca e respiratória, sendo também componente vital no cuidado ao paciente crítico em ambientes como terapia intensiva, pronto-socorro e durante procedimentos cirúrgicos, inclusive nos pacientes não diabéticos.
Capacitação e treinamento
O principal desafio no uso dos TLRs, segundo Sodré, está em garantir que seus resultados sejam confiáveis. “Esta garantia passa pelo treinamento dos usuários dos equipamentos, seleção adequada de equipamentos para a finalidade do uso, realização de testes de controle de qualidade, correto registro e comunicação dos resultados.” Em geral, explica ele, estes testes são realizados pela equipe de enfermagem, que nem sempre tem a expertise sobre os processos analíticos, pré-analíticos e pós-analíticos, logo os treinamentos são necessários.
“É preciso haver todo um processo de educação continuada. Na prática, face à rotatividade do pessoal de enfermagem, é recomendado que no treinamento introdutório da equipe de enfermagem tenha um momento específico para orientar estes profissionais quanto ao correto uso dos glicosímetros. Outros treinamentos devem ser programados no processo de educação continuada. A utilização de um sistema de gerenciamento automatizado, por exemplo, permite identificar os usuários que tenham problemas recorrentes para que possam ser retreinados. É recomendado que periodicamente os usuários sejam retreinados, mesmo aqueles que não apresentem erros detectados pelo sistema de gerenciamento.”
Assim como o programa de treinamento, o processo de coleta e análise do material também é de responsabilidade do laboratório clínico. Gustavo Campana, diretor médico da Dasa, explica que todas as coletas seguem padrões de gestão e de qualidade, e as análises de resultados seguem as mesmas regras da coleta tradicional. “A análise é realizada no local onde o paciente está, sem necessidade de transporte para o laboratório. Para ter um exemplo da abrangência, existem protocolos de point of care dentro de ambulâncias, mas esse processo é pouco utilizado no Brasil.” A amostra de sangue capilar (para os testes rápidos de glicose) não necessita de preparo pré-analítico, fato que permite o processamento em regiões com infraestrutura elétrica e hidráulica deficientes.
Existem duas maneiras pelas quais o laboratório pode gerenciar o teste: a manual e a automatizada. A primeira, mais trabalhosa e complexa, requer que os dados de rastreabilidade sejam anotados manualmente em planilhas. “Logo, é necessário que sejam elaboradas planilhas para que o usuário faça as anotações dos dados referentes aos materiais utilizados, testes de controle de qualidade e calibração, resultados obtidos e dados do paciente e do operador, além da data e hora da realização do teste”, explica Sodré.
A forma mais segura e rastreável para realizar os testes de glicemia, explica ele, é com a utilização de equipamentos com conectividade a um sistema de gerenciamento do teste. “Neste sistema, é possível cadastrar os usuários habilitados a operar o equipamento, identificar o material utilizado em relação ao seu lote de fabricação, identificar o paciente pela pulseira de código de barras, garantir a realização e adequação dos testes de controles de qualidade, registrar automaticamente os resultados dos testes do paciente, além de informar os resultados críticos identificados.”
A participação do laboratório para garantir que os testes sejam efetuados da maneira adequada começa na seleção dos equipamentos, e segue com a elaboração dos documentos obrigatórios, treinamento dos operadores e definição do processo de educação permanente, definição da sistemática de registros de resultados provisórios, liberação de laudos e comunicação de resultados críticos, além da análise dos controles de qualidade.
Atualmente, estão disponíveis no mercado dispositivos de teste laboratorial remoto específicos para uso hospitalar, os quais permitem a conexão direta com o sistema de informação laboratorial (LIS) e/ou com o sistema de informação hospitalar (HIS), permitindo a rastreabilidade de todo o processo de execução do exame.
Custo ainda é alto
A principal finalidade dos TLRs é a melhoria dos desfechos clínicos dos pacientes, maior satisfação dos mesmos e melhor uso de recursos do sistema de saúde. Sodré diz que os TLRs são, geralmente, mais caros, quando seu custo direto é comparado com o custo dos testes clássicos. “Neste ponto, é necessário enfatizar que isto é real quando a comparação do custo é feita de forma direta para a execução da dosagem. Porém, quando um TLR é usado corretamente, ele tem o potencial de reduzir o custo do sistema, podendo diminuir o tempo de permanência dos pacientes nas unidades de emergência ou hospitais; acelerar tratamentos e condutas que reduzam o dano ao paciente, evitando incapacidades futuras; e contraindicar procedimentos desnecessários.”
Mas vale ressaltar que o TLR, como qualquer outro teste laboratorial, não deve ser usado caso não agregue valor ao sistema. Isto acontece principalmente quando ele é mal indicado, repetido desnecessariamente e/ou quando seu resultado não é confiável. O teste laboratorial remoto para glicose, por exemplo, não deve ser utilizado para fins de diagnóstico de diabetes.
Um dos principais cuidados, segundo Sodré, para garantir a confiabilidade na adoção destes testes, é ter claras as indicações para as quais o teste tem potencial de agregar valor ao sistema de saúde.
Como assegurar a qualidade do exame
Campana, da Dasa, explica que existem diferentes tecnologias e metodologias para TLR. Depende do tipo de exame e do responsável pela análise. “Entre as metodologias de testes rápidos há heterogeneidade de performance, e alguns exames precisam ser repetidos no laboratório. São exames que precisam de resposta rápida e, a depender do exame e do resultado, recomenda-se que o paciente repita o exame no laboratório, normalmente para acompanhamento e definição de conduta. Entretanto, a escolha pela abordagem é sempre do médico solicitante.”
Para garantir que os resultados dos testes rápidos sejam compatíveis ao de testes realizados em laboratórios, o fabricante das tiras reagentes e do dispositivo que realiza a medição deve garantir a acurácia do equipamento seguindo as especificações analíticas determinadas por organismos internacionais, fato que garante a qualidade do resultado obtido no equipamento de TLR para glicose e comparável ao método laboratorial.
Conforme explica a equipe de especialistas do Fleury, segundo o documento ISO 15197:2013, a avaliação mínima deve ser realizada com 100 indivíduos diferentes tomando medidas duplicadas de cada um dos três lotes de reagentes. Para a acurácia analítica, requer que 95% dos resultados estejam dentro do intervalo:
– Os resultados do glicosímetro devem atingir os critérios de acurácia de ± 15 mg/dL dos valores obtidos no laboratório em concentrações de glicemia < 100 mg/dL;
– Os resultados do glicosímetro devem atingir os critérios de acurácia de ± 15% dos valores obtidos em laboratório em concentrações de glicemia ≥ 100 mg/dL.
Para a precisão, o critério de aceitação é que o método apresente um coeficiente de variação menor ou igual a 5%.
Já segundo o Clinical and Laboratory Standards Institute (CLSI), a acurácia analítica requer que:
– 95% das glicemias pelo glicosímetro, quando comparadas com o método laboratorial de referência, precisam estar dentro de uma faixa de ± 12 mg/dL, para concentrações de glicemia < 100 mg/dL, e dentro de uma faixa de ± 12,5%, para os valores de concentração de glicemia ≥ 100 mg/dL.
– 98% dos resultados individuais do glicosímetro devem atender ao critério anterior de precisão, segundo o qual a glicemia pelo glicosímetro pode diferir em ± 15 mg/dL em valores < 75 mg/dL, quando comparada com o teste laboratorial de referência, e até ± 20%, para valores ≥ 75 mg/dL.
Em relação à qualidade e acurácia dos resultados, Sodré destaca o processo de gerenciamento automatizado dos controles de qualidade. “Como os testes laboratoriais remotos, em especial para glicemia capilar, são realizados pela equipe de enfermagem, a obrigatoriedade de realizar os controles internos de qualidade e sua análise automática facilita muito a garantia da qualidade, pois o gerenciamento automatizado permite a programação do bloqueio dos equipamentos caso o controle interno de qualidade não tenha sido realizado na periodicidade indicada e/ou esteja fora da faixa aceitável.
Caso não haja uma integração entre a gestão dos testes rápidos e os sistemas laboratoriais, podem ocorrer problemas de gestão da qualidade, de gerenciamento de insumos e de assessoria médica. Segundo a equipe do Fleury, a ausência do laboratório na gestão dos testes remotos dificulta a identificação de possíveis erros analíticos e retarda a implantação de ações para eliminar suas causas. “O laboratório possui a experiência para realizar a validação, controle interno e externo, avaliação dos resultados e de interferentes, bem como a forma como monitorar os possíveis desvios nas fases pré-analítica, analítica e pós-analítica.”
Entre os problemas mais comuns, o mais frequente é a baixa confiabilidade nos resultados e/ou indicação inadequada para a realização do exame. “Nestes cenários, o TLR não agrega nenhum valor ao sistema, de fato ele apenas eleva o custo. Já o problema mais grave que pode acontecer é um desfecho clínico negativo secundário a uma indicação desnecessária de tratamento, procedimento e/ou uma outra tomada de decisão equivocada a partir de um resultado errôneo de um TLR”, ressalta Sodré.
* Dr. Álvaro Pulchinelli Jr; Dr. Gustavo Loureiro e Dr. Nairo Sumita – assessores médicos em bioquímica clínica do Fleury Medicina e Saúde, e Dra. Katia Regina César, coordenadora Técnica de Controle de Qualidade e Point of Care do Fleury Medicina e Saúde.
Fonte: Labnetwork